JOÃO PEDRO DA COSTA
O desejo é a distância tornada sensível.
MAURICE BLANCHOT
(1) Fenómeno cultural, exercício recreativo, produto de uma sociedade onde se foi perdendo o valor das relações afectivas, símbolo compulsivo de fragilidade e fraqueza, praga, flagelo, doença – estes são alguns dos termos utilizados para definir a toxicodependência.
(2) Na verdade, a toxicodependência é uma palavra inventada pela Comunidade Terapêutica Ponte da Pedra, em Leça do Balio, e que significa percurso ou trajecto que une a distância entre um ponto A (o dependente) a um ponto B (o tóxico).
(3) A toxicodependência é igualmente um manual de instruções para ser utilizado por um praticante de forma a percorrer essa distância e a suplantar os eventuais obstáculos que lhe surgem pelo caminho.
(4) A prática da modalidade difundiu-se em Portugal, na Suíça e pelo mundo inteiro sobretudo através da ocupação dos tempos livres, tendo sido de imediato adoptada por jardineiros, militantes do PCP, baixistas e outros curiosos em busca de adrenalina que a interpretaram como um misto de desporto radical e de exercício meditativo.
(5) Apesar de poder ser praticada tanto em meios rurais como urbanos, é sobretudo nas cidades, subúrbios e bairros sociais, que se podem encontrar os praticantes da toxicodependência, cuja filosofia e práxis mudam radicalmente a forma como vemos e vivemos a paisagem humana.
(6) Aparentes obstáculos como a proibição, o conhecimento empírico, a razão ou as leis do mercado são transformados numa espécie de instrumentos de um ginásio imaginário em que se subverte o desígnio que esteve na criação de palavras como mãe, diversão, felicidade e amor.
(7) O primeiro objectivo de qualquer toxicodependente consiste em desenvolver uma perícia que lhe permita percorrer, ultrapassar ou contornar com a máxima eficiência a distância e os obstáculos que o separam do tóxico. Os músicos de Jazz costumam dizer que os novatos precisam de aprender tudo sobre o seu instrumento e a música para depois esquecer tudo isso e poderem finalmente aprender a tocar. O mesmo se pode dizer sobre o desejo e a fúria que um toxicodependente investe na prática da modalidade: no seu estado mais puro, a toxicodependência é, tal como o Jazz, uma arte do improviso.
(8) O segundo objectivo é a sobrevivência. O toxicodependente vive permanentemente num estado de emergência para chegar ao tóxico, e nessa vivência vai perdendo os outros, a sombra e os dentes. Na Comunidade Terapêutica Ponte da Pedra, em Leça do Balio, aprende-se todos os dias que a única distância que vale a pena galgar é a que nos separa de nós mesmos. É por isso que, aqui, os jardineiros, os militantes do PCP, os baixistas e os demais curiosos não querem abdicar do significado preciso e genuíno de palavras como amor, felicidade, diversão e mãe.
João Pedro da Costa é música, lavoura e corridas.
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