INÊS DIAS
I.
A portion of the Heart bony
A minha avó pediu-me,
assim que aprendi a ler,
que lhe pusesse por escrito
a roupa com que desejava
ser enterrada. Depois
abriu o guarda-fatos,
prendeu o papel e
esperou vários anos
pelo dia. Na crença absoluta
– ela que conhecia apenas
o desenho do próprio nome –
de que as letras eram vontades
eternas. Permaneceriam,
ao contrário de nós.
II.
A portion of the Heart earthy
O meu avô tinha
uma caligrafia de estrada
larga em dia de sol,
que foi esquecendo
com a doença,
desfazendo em fumo
entre os dedos.
O seu mundo era uma dança
afinal sem palavras,
que o fazia estremecer
cada vez mais de assombro,
e as certezas – como
devem ser – todas elas
provisórias.
III.
There are some diseases which consist only in morbid actions,
but which do not produce any change in the structure of the parts:
these do not admit of anatomical inquiry after death.
MATTHEW BAILLIE [1793]
E és outra vez
a primeira mulher e ele
o único homem.
E a morte já era
sempre. Antes
das palavras que sabiam
ou não dizer a despedida,
esses nossos pequenos mecanismos
de eternidade. Uma herança
no sangue, carne simplesmente
entregue à temperatura
da terra que ainda se via
todos os dias. Talvez
uma hesitação da memória
nos segundos inaugurais
de cada manhã, quando
o real parecia convulso:
um sonho a acordar
dentro de outro sonho,
um mesmo lugar
em que dois corpos
podiam coincidir.
Inês Dias, professora e tradutora, leva a alegria muito a sério.