MATHILDE FERREIRA NEVES
SINOPSES
Sinopse breve
Um homem encontra uma mulher.
Ele salva-a sem que ela queira. Ela fica sem que ele peça.
E vice-versa.
Sinopse desenvolvida
Malaquias Rito instalou-se recentemente numa cave em Lisboa, vindo de uma aldeia pequena das Serras de Aire e Candeeiros. É funcionário camarário, varre os passeios da cidade. Em casa, cultiva o pequeno quintal e escreve poesia. Às segundas, vai ao cinema, sessão da meia-noite.
Leonor cresceu em Lisboa, uma zoóloga que nunca se empregou como tal, trabalha como mulher-a-dias e mora num prédio em ruínas, na capital. Vive na negação do mundo e de si própria, sobrevive na desistência. Vai também frequentemente ao cinema, todas as segundas-feiras, à meia-noite.
É precisamente à entrada do cinema que os dois se cruzam: Malaquias aborda Leonor, querendo instintivamente salvá-la de si mesma; Leonor aceita a abordagem, pela doçura.
Vêem filmes juntos, bebem chá, caminham pela cidade, perscrutam o Tejo, conversam e partilham o mesmo silêncio. Na casa de Malaquias, Leonor lê os poemas dele. A palavra irrompe, de súbito, em surdina. Ele salva-a sem que ela queira. Ela fica sem que ele peça. Fazem amor e enfrentam-se despidos.
Depois de juntos, diante do mar, decidem mudar-se para a Serra: ele amanha a terra e escreve; ela é intérprete ambiental, especializada na flora e fauna daquela área; têm um burro que os ajuda e acompanha. As suas vidas tornam-se o espaço calcário que habitam, e o burro foge porque não suporta a dor.
NOTAS DE REALIZAÇÃO
O filme é o caminho de um homem e de uma mulher. Leonor e Malaquias afirmam-se através da paisagem, contra um certo estado do mundo. Refugiam-se um no outro, isolando-se num longe relativo, e a sua única fatalidade é o de terem de permanecer juntos, porque o reconhecimento (de um em relação ao outro) os redime dessa História que a sua memória recusa. Amam como uma forma extrema de inteligência. Mas o campo é tão violento e alienado quanto a cidade, o burro é a marca disso. Ficar é resistir ou apagar-se?
CARACTERIZAÇÃO DAS PERSONAGENS
Malaquias Rito
Homem baixo (1,65m); entroncado mas elegante; mãos grossas de pele marcada; branco mas queimado do sol; cabelo preto e curto. Tem 35 anos. É tímido mas determinado.
Ao falar utiliza, geralmente, um vocabulário rebuscado, como se escrevesse pela boca. Uma voz bem colocada, declamadora. Completou o ensino secundário perto da sua terra natal nas Serras de Aire e Candeeiros. Gosta muito de ler e de cultivar flores.
Vive, recentemente, numa cave em Lisboa, onde, para além de ser poeta, é funcionário municipal, varredor: turno da madrugada, seis dias por semana.
Veste calças escuras, camisas claras de manga comprida (que enrola até ao cotovelo), roupa interior branca (camisas interiores de alças). Roupa sempre bem arranjada, engomada.
Leonor
Mulher de estatura média (1,70m); encorpada mas graciosa; mãos e pés grandes, marcados; pele muito branca; cabelo castanho claro, comprido e ligeiramente ondulado. Tem 30 anos. Olhar agudo. Postura severa, andar determinado, gesto sem hesitação nenhuma. O temperamento dela alterna entre a ebulição interior e a tranquilidade indiferente. Vive na negação do mundo e na desistência de si mesma. Quando fala, tem trejeitos subtis de criança.
Cresceu em Lisboa. Completou licenciatura em zoologia. Limpa casas.
Usa vestidos leves de cores vivas e algo decotados no peito. Sapatos rasos, quase desportivos. Aparenta um ar desleixado. Embrulha desarrumadamente o cabelo na nuca e pendura nele flores naturais da época.
Burro Zacarias
Burro branco, manso, com focinho simpático, um pouco indiferente ao mundo em redor, profundamente «apaixonado» por Leonor, que acompanha constantemente, seguindo-a de perto ou apenas com o olhar.
ARGUMENTO
PRELÚDIO
Cena 1
Serras de Aire e Candeeiros
Exterior/Dia
Menino (Malaquias)
Um menino de dez anos, moreno e transpirado, dorme profundamente à sombra de laranjeiras. O sono dele vai sendo sobressaltado pelo som seco de laranjas maduras a cair na terra. Está muito sol. Ao longe ouve-se intermitentemente o balir de ovelhas. Papoilas, giestas, alecrim e outros arbustos rasteiros salpicam o chão rochoso da serra.
Cena 2
Lugar indeterminado, casa indeterminada
Interior/Dia
Menina (Leonor)
Uma menina de cinco anos, de pele muito branca e com cabelos castanhos longuíssimos, bate com a cabeça contra as paredes do seu quarto ao mesmo tempo que geme: «Dói, dói, dói.» O quarto é amplo e permanece na penumbra, as cortinas fechadas. A cama está desfeita e coberta de livros ilustrados. Na parede rosa pálido em que a menina bate com a cabeça, encontram-se afixadas várias fotografias, postais, desenhos e ilustrações de burros. Ouvem-se bátegas de chuva de encontro aos vidros da janela.
1º MOVIMENTO
Cena 3
Lisboa – entrada do cinema King
Exterior/Noite
Leonor e Malaquias
É noite. Leonor encontra-se à entrada do cinema. Tem um pequeno molho de carqueja-mansa lilás espetado no cabelo, que está preso num carrapito meio solto, madeixas onduladas caiem-lhe sobre o rosto. Olha atentamente os cartazes dos filmes expostos na vitrina.
Malaquias chega e aproxima-se devagar. Uma vez junto à vitrina, fixa primeiro o molho de carqueja-mansa no cabelo de Leonor, depois olha discretamente o perfil inteiro de Leonor reflectida no vidro. Malaquias aborda-a, então, timidamente mas decidido.
-
MALAQUIAS
Já viu este filme?
LEONOR
Não.
MALAQUIAS
Acompanha-me?
LEONOR
Não, não gosto do cartaz…
MALAQUIAS
E este?
LEONOR
Está bem.
Cena 4
Lisboa – entrada do cinema King
Exterior/Noite
Leonor e Malaquias
No final da sessão, ao saírem do cinema, falam de novo:
-
MALAQUIAS
Gostou?
LEONOR
Não consigo falar dos filmes logo depois de os ver.
MALAQUIAS
Apetece-lhe um chá? Pago eu.
LEONOR
Está bem.
MALAQUIAS
Chamo-me Malaquias Rito.
LEONOR
Leonor.
Cena 5
Lisboa – bar indeterminado
Interior/Noite
Leonor e Malaquias
O bar em que se instalam é amplo, tem uma iluminação a meia-luz, quente, há muitas velas acesas que piscam no espaço. Existe uma parede de vidro pela qual se entrevê o movimento da rua. Há um piano num dos cantos. Leonor e Malaquias parecem desadequados no espaço, hesitam nas mesas de tampo vidrado, hesitam nas cadeiras de estofo vermelho. Acabam por se sentar lado a lado, num sofá. Encostam acidentalmente os ombros, cruzam de relance o olhar e permanecem com os ombros juntos. Aproxima-se deles um empregado de mesa.
-
MALAQUIAS
Uma infusão de tília?
LEONOR
Não. Prefiro chá verde, ou outro que não saiba tanto a campo.
MALAQUIAS
Um chá verde, se faz favor.
O empregado dirige-se ao balcão.
-
MALAQUIAS
Não quer nada com o campo?
LEONOR
Sabe-me mal, só isso.
Ouve-se o piano ao fundo. Alguém tenta uns acordes e desiste. Ambos vão bebendo o chá devagar.
-
MALAQUIAS
Quer mais uma chávena?
LEONOR
Meia chávena.
Malaquias serve, muito delicadamente, Leonor.
-
MALAQUIAS
Já a tenho visto na sessão da meia-noite…
LEONOR
É a melhor hora. Eu também o reconheço. O filme atordoou-me… Acompanha-me a casa?
MALAQUIAS
Claro. Onde mora?
LEONOR
Vinte minutos a pé.
Cena 7
Lisboa – rua, numa zona velha e algo degradada
Exterior/Noite
Leonor e Malaquias
Malaquias e Leonor seguem devagar. Ruas quase desertas, com variações de iluminação inquietantes. Malaquias segue-a um passo atrás. Conversam baixinho.
-
MALAQUIAS
Nunca teve profissão?
LEONOR
Não. Faço biscates.
MALAQUIAS
Formou-se nalguma coisa?
LEONOR
Zoologia.
MALAQUIAS
Eu quis ser poeta e sou varredor.
LEONOR
Parabéns, quis e é.
MALAQUIAS
Mas quis ser o que não sou…
LEONOR
Mesmo assim, quis ser e é qualquer coisa.
Leonor pára, dando a entender que já chegaram. Encontram-se diante de um prédio arruinado, rodeado de outros prédios antigos.
-
MALAQUIAS
Boa noite.
LEONOR
Até segunda.
Leonor entra no prédio, uma luz oscilante acende-se lá dentro. Malaquias afasta-se muito lentamente.
Cena 8
Lisboa – entrada do cinema King
Exterior/Noite
Leonor e Malaquias
Na semana seguinte, Leonor encontra-se exactamente no mesmo sítio onde trocaram as primeiras palavras. Está ligeiramente mais composta do que na semana anterior: o vestido sem engelhas; o rosto mais aberto; o cabelo menos desgrenhado, salpicado de calêndulas silvestres amarelas.
-
MALAQUIAS
E hoje qual é o cartaz mais atractivo?
LEONOR
Este. [Leonor aponta o cartaz do western River of No Return (1954), de Otto Preminger.]
MALAQUIAS
Então, vamos.
Cena 9
Lisboa – entrada do cinema King
Exterior/Noite
Leonor e Malaquias
Saem do cinema silenciosos. Caminham lado a lado de ombros encostados. Aproximam-se da mota de Malaquias e arrancam.
Cena 10
Lisboa – beira-rio, frente ao Clube Naval
Exterior/Noite
Leonor e Malaquias
Chegam e estacionam junto ao rio, em frente ao Clube Naval. Estacam à beira da água, sempre em silêncio. Ela está visivelmente agitada, algo a perturba interiormente. De súbito, Leonor atira-se à água. Malaquias observa-a impávido e sereno. Ela esbraceja sem pronunciar palavra. Ao fim de alguns instantes, nada em direcção ao cais e sobe as escadas até Malaquias.
-
MALAQUIAS
Levo-a a casa.
LEONOR
Não.
Leonor soluça de frio, parece querer verbalizar algo mas não é capaz. Malaquias abeira-se dela, tira-lhe a mola que lhe prende o cabelo e com ambas as mãos tenta espremê-lo. Faz o mesmo com o vestido. Ela sacode-o sem violência, finalmente capaz de dizer o que queria.
-
LEONOR
Atirei-me ao rio para ter a certeza que não me salvava. Pausa longa. Nunca mais se fala nisto. Pausa breve. Até segunda.
Leonor afasta-se encharcada e trémula, as calêndulas silvestres amarelas vão caindo do seu cabelo. Malaquias permanece junto ao rio.
Cena 11
Lisboa – entrada do cinema King
Exterior/Noite
Leonor e Malaquias
De novo, à entrada do cinema, uma semana depois:
-
LEONOR
Não quero ver nenhum destes filmes.
MALAQUIAS
O que propõe, então?
LEONOR
Leve-me a sua casa.
MALAQUIAS
Agora?
LEONOR
Sim.
Cena 12
Lisboa – casa/rés-do-chão com quintal, no Bairro das Colónias
Interior/Noite
Leonor
Leonor percorre vagarosamente cada divisão da casa de Malaquias, seguindo com a mão direita as frestas e manchas de humidade na parede. O chão é de tacos de madeira não encerados meio soltos, cada passo dela provoca um tilintar. A casa tem pouca mobília: cama de casal (lençóis brancos bordados), mesa maciça quadrada, cadeira preta, banca de trabalho (com muitas folhas escritas espalhadas e alinhadas em pilhas). Os únicos electrodomésticos que existem são: um frigorífico pequeno e velho, um fogão negro do uso.
Cena 13
Lisboa – casa/rés-do-chão com quintal, no Bairro das Colónias
Exterior/Noite
Leonor
O quintal está bem amanhado, tem canteiros geometricamente cultivados: alecrim, rosmaninho, salsa, hortelã, cactos de vários tipos, narcisos amarelos e brancos – tudo iluminado por uma luz branca que vem do interior da casa, filtrada pelas janelas de vidro fumado da marquise. Leonor senta-se no murito de um dos canteiros e sorri discretamente às plantas do quintal. Depois de fixar o céu nublado, regressa ao interior da casa.
Cena 14
Lisboa – casa/rés-do-chão com quintal, no Bairro das Colónias
Interior/Noite
Leonor e Malaquias
Leonor senta-se em frente à banca de trabalho dele e começa a ler as dezenas e dezenas de folhas que a cobrem. Muito quieta, apenas o seu olhar se move da esquerda para a direita aos saltos. Quando acaba de ler, descansa a cabeça entre as mãos, os cotovelos apoiados nas pernas. Leonor está claramente comovida com os poemas, está-lhe marcado no rosto e no olhar. Malaquias interrompe-lhe a perturbação:
-
MALAQUIAS
Quer tomar alguma coisa?
LEONOR
Quero ficar.
MALAQUIAS
Aqui?
LEONOR
Sim.
Dirigem-se ao quarto. Ela palpa os lençóis bordados e senta-se de frente para ele. Malaquias inclina-se para o rosto de Leonor, beija-lhe delicadamente as pálpebras.
Cena 15
Lisboa – casa/rés-do-chão, no Bairro das Colónias, quarto
Interior/Noite
Leonor e Malaquias
Nus, de pé, frente a frente, a cama já toda desfeita. O crisântemo vermelho que Leonor tinha no cabelo, está pousado numa das almofadas. Leonor move os lábios. Ia dizer qualquer coisa, hesita. Malaquias percebe e intercepta-a:
-
MALAQUIAS
O quê?
LEONOR
A minha casa é um homem.
2º MOVIMENTO
Cena 16
Nazaré – praia
Exterior/Dia
Leonor e Malaquias
Malaquias e Leonor caminham lado a lado, ombros encostados, à beira-mar, pés mergulhados na maré-alta, ambos com as calças dobradas até ao joelho. Não há ninguém na praia, para além deles. O vento sacode-lhes permanentemente o cabelo. Leonor tem o rosto fechado, pensativo.
-
MALAQUIAS
Em que ruminas?
LEONOR
Quero sair de Lisboa. Talvez devêssemos mudar-nos para a serra onde cresceste.
MALAQUIAS
É difícil por lá, a vida.
LEONOR
Abriram vagas nos centros de interpretação ambiental no Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros. Pode ser que passe nos testes. Assim, voltas a amanhar e a escrever com tempo.
MALAQUIAS
Mas tu não querias ter emprego…
Leonor não responde, tenta prender o cabelo, consegue por momentos um carrapito mal feito, mas o vento logo lho desfaz. Malaquias percebe que Leonor não se vai explicar e continua a conversa.
-
MALAQUIAS
Então, vamos atirar-nos à dureza da serra?
LEONOR
Sim.
MALAQUIAS
E que mais?
LEONOR
Não casamos, não temos filhos e não vamos à praia no Verão.
MALAQUIAS
É tudo?
LEONOR
Quero um burro. Um burro que se chame Zacarias.
MALAQUIAS
Um burro?!
LEONOR
Sim. Sempre quis ter um burro, desde pequenina. Os meus avós maternos tinham um burro muito velho.
MALAQUIAS
Os teus avós maternos eram do campo?
LEONOR
Não, mas mudaram-se para uma quinta quando se reformaram e ficaram com o burro do antigo proprietário. Eu passava lá as férias grandes. O meu avô contou-me todas as histórias que conhecia com burros… até me disse que tinha havido um burro pintor em Paris, cujo quadro Pôr-do-sol sobre o Adriático foi exposto num salão muito badalado, em 1910. O burro pintor chamava-se Lolo, mas o seu pseudónimo era Joachim-Raphaël Boronali.
Malaquias desata a rir e Leonor, ainda meio perdida nas suas recordações, vai trincando a ponta dos dedos ao companheiro.
-
MALAQUIAS
E vais chamar o nosso burro Zacarias, porquê?
LEONOR
Porque rima com Malaquias.
Cena 17
Nazaré – praia
Exterior/Dia
Leonor e Malaquias
Leonor concentra-se no fio do horizonte, enquanto estremece ligeiramente com o vento. Malaquias despe-se e mergulha no Atlântico. Leonor senta-se um pouco mais acima no areal. Escurece devagar. No mar vê-se, ao longe, a mancha vermelha do calção de banho de Malaquias, que bóia tranquilamente. Em surdina, ouve-se Leonor dizer para si, como se recitasse uma lengalenga:
-
LEONOR
O burro é bicho que não faz o que não sabe e é teimoso por ter consciência dos seus limites físicos. O burro, ao contrário do cavalo, mesmo que o ordenem, não cavalga até morrer.
3º MOVIMENTO
Cena 18
Serras de Aire e Candeeiros – eira
Exterior/Dia
Leonor, Malaquias e burro Zacarias
É manhã. A serra está esplendorosa. A geada ainda cobre alguns maciços de calcário. Leonor está sentada em cima de um pedregulho no meio de uma eira. Com o computador portátil apoiado nas pernas, trabalha no seu relatório. Tem vestida uma camisola grossa de malha sobre um vestido fino. O seu cabelo está preso num carrapito florido de begónias rosa pálido. Mais adiante, Malaquias planta batatas, num ritmo rápido, mecânico. O burro Zacarias come umas ervas junto a umas laranjeiras, ali muito perto.
-
MALAQUIAS
Consegues acabar hoje o relatório?
LEONOR
Sim. Estou só a rever os dados estatísticos.
Malaquias atira para longe uma batata imprópria para plantar e diversas pedritas que lhe dificultam o trabalho.
A conversa continua sem que ambos deixem de trabalhar.
-
MALAQUIAS
A tua cabeça?
LEONOR
Já não dói… «Passeriforme» leva acento?
MALAQUIAS
Não.
LEONOR
Não escreves há que tempos…
MALAQUIAS
Tenho a ponta dos dedos gretada e falta-me uma certa realidade.
LEONOR
O gretado cura-se com vaselina mas «uma certa realidade» não sei o que é.
MALAQUIAS
Queria falar desta gente da serra e não consigo…
Leonor deixa de escrever. Fixa o olhar em Malaquias que continua a plantar, sempre ao mesmo ritmo. O burro começa a comer as laranjas que se encontram caídas na base das árvores. O plantador apercebe-se e diz numa gargalhada:
-
MALAQUIAS
Um burro a laranjas… nunca tal vi. Os velhotes da aldeia haviam de se rir disto. Se já acham graça a um burro branco nestas bandas, que zurra sempre à mesma hora, haviam de consolar-se de o ver comer laranjas ao pequeno-almoço.
LEONOR
«Um burro a laranjas» é um bom título, já é «uma certa realidade»…
Malaquias limpa o rosto a um lenço de pano escuro que traz no bolso. Desta vez é ele que fixa a companheira.
Leonor dá por terminada a revisão do relatório, pousa o computador sobre o pedregulho, põe-se de pé e parte.
-
MALAQUIAS
Eia, Leonor, onde vais?! Preciso de mais duas mãos para acabar isto!
LEONOR
Volto já, vou só buscar gente à aldeia.
Malaquias vê, perplexo, Leonor afastar-se apressadamente em direcção à aldeia, atropelando o matagal. O burro segue a dona. Malaquias prossegue a sua tarefa, o suor escorre-lhe do rosto caindo sobre a terra.
Explode o chilrear metálico das gralhas-de-bico-vermelho, um bando levanta voo e esvoaça ondulantemente.
Cena 19
Serras de Aire e Candeeiros – eira
Exterior/Dia
Leonor, Malaquias, burro Zacarias e sete aldeões (4 homens e 3 mulheres)
Quando Leonor regressa, a luz está mais forte, o sol mais baixo, Malaquias está já de camisa interior branca de alças e as batatas quase todas plantadas. Leonor vem acompanhada pelos habitantes mais velhos da aldeia, o burro Zacarias fecha a procissão.
-
MALAQUIAS
Vens a tempo do foscamónio.
LEONOR
Foscamónio?
MALAQUIAS
É o adubo.
LEONOR
Ainda faltam dois regos.
MALAQUIAS
Sim, mas eu acabo de plantar.
LEONOR
Não, não. Vai juntar-te à malta ali debaixo das laranjeiras e leva o computador contigo. Toma.
MALAQUIAS
Já acabaste o relatório?
LEONOR
Sim.
Leonor estende-lhe uma toalha húmida e despe a camisola grossa de malha. Malaquias continua perplexo, limpa-se à toalha e resolve obedecer à companheira, que toma o seu lugar. Debaixo das laranjeiras, sentaram-se os mais velhos. O burro continua a petiscar erva e laranjas, de vez em quando fixa a dona. Malaquias aproxima-se sorridente da gente da aldeia. Quase junto das laranjeiras pára um instante e bebe dois golos de uma garrafa de vidro verde, que se encontra dentro de uma cisterna, presa por uma corda.
Cena 20
Serras de Aire e Candeeiros – eira
Exterior/Dia
Leonor, Malaquias, burro Zacarias e sete aldeões (4 homens e 3 mulheres)
Mais tarde, Leonor enche os regos com terra, cobrindo as batatas, concentrada na sachola, o vestido empoeirado e transpirado. Ouvem-se risos abafados e a conversa entre Malaquias e os velhos soa a ladainha.
-
VELHA
… era maluquinho, chamavam-lhe o Pendurado, porque se pendurava em tudo o que era árvore e gritava muito. A professora Ofélia, que era má como as cobras, expulsava-o da sala todos os dias e ele ficava sozinho no recreio, pendurado nas azinheiras à espera que a tua mãe saísse da lição. A tua mãe e o teu pai gostavam dele, eram os únicos que não lhe atiravam saibro.
VELHO
Matou-se no penhasco: estava pendurado num carvalho e o ramo quebrou, foi por ali abaixo até chegar à ribeira…
O burro zurra cinco vezes consecutivas. Malaquias interpela, ao longe, a companheira.
-
MALAQUIAS
São precisamente dezassete horas. Anda Leonor, as batatas já estão mais que cobertas.
LEONOR
Não se rega?
MALAQUIAS
Mais logo. Vamos levar esta gente a casa e já voltamos.
LEONOR
Está bem. Dá-me vinho.
Malaquias leva à companheira a garrafa de vidro.
-
MALAQUIAS
Bebe devagar, está gelado.
Enquanto Leonor bebe algumas goladas, escorre-lhe um fio de vinho pelo queixo abaixo, manchando o vestido na zona do peito.
Cena 21
Serras de Aire e Candeeiros – sendas várias
Exterior/Dia
Leonor, Malaquias, burro Zacarias e sete aldeões (4 homens e 3 mulheres)
Logo de seguida, ambos encaminham os velhotes pela serra fora. O burro leva o computador num seirão que carrega no dorso, juntamente com ferramentas e afins. Leonor estende as mãos à brisa. Malaquias percebe que a companheira está magoada na palma das mãos.
-
LEONOR
São só umas bolhas. Logo se cura.
Enquanto caminha ao lado de Malaquias, Leonor dá uma laranja a Zacarias que a segue. O burro come a laranja e lambe as mãos feridas da dona. Leonor sorri, Malaquias parece distraído. Chegam à aldeia e despedem-se calorosamente dos velhotes: Leonor e Malaquias distribuem beijos, ela com um sorriso largo agarrando os velhotes pela cintura, ele mais comedido mas com a mão no pescoço de quem se despede. Há uma clara familiaridade entre todos. O burro fica no largo da igreja a beber água de um pequeno tanque.
Cena 22
Serras de Aire e Candeeiros – sendas várias
Exterior/Dia
Leonor, Malaquias e burro Zacarias
Malaquias e Leonor regressam imediatamente ao batatal e no caminho conversam:
-
MALAQUIAS
Tomara que não chova, senão apodrece tudo.
LEONOR
Depender do clima é tão estranho…
MALAQUIAS
Nem por isso.
LEONOR
Nunca segui muito o tempo…
MALAQUIAS
És mais do espaço, mas isso também é uma forma interior de meteorologia.
LEONOR
Talvez… Encontraste uma «certa realidade»?
Nesta altura, atravessam um eucaliptal e Leonor começa a saltitar de sombra em sombra. Malaquias segue-lhe os passos. Num salto excessivamente longo, Leonor cai e rebola nas folhas secas que cobrem o chão. Permanece deitada, observando o céu a escurecer. Malaquias cobre-a de folhas e cavaquitos. Ela continua imóvel e fica coberta por inteiro. Mantêm-se calados durante um longo momento, ouvindo-se apenas os ramos a estalar e outros pequenos rumores da terra. Ele olha-a penetrantemente assim estendida e coberta, até que desabafa:
-
MALAQUIAS
És um pedaço de terra comovente.
O burro aproxima-se e com o focinho vai descobrindo os pés de Leonor. Leonor levanta-se de súbito, projectando folhas e cavacos e corre pelo eucaliptal abaixo. Malaquias corre-lhe atrás. Correm ambos desabridamente. Zacarias segue-os devagar e sem sobressaltos. Já é noite. Toca o sino da igreja para a reza do terço. Morcegos cruzam o ar.
CADÊNCIA
Cena 23
Serras de Aire e Candeeiros – casa, quarto
Interior/Dia
Leonor, Malaquias e burro Zacarias
Leonor está deitada na cama, os olhos cobertos por uma toalha húmida. O quarto está meio iluminado (numa penumbra radiosa), as janelas abertas são varridas por cortinas vermelhas que esvoaçam ao vento. Do lado de fora, junto à janela, entrevê-se o burro à medida que as cortinas esvoaçam. No peitoril, há uma jarra larga de cerâmica azul com um ramalhete de alfazema. Malaquias aproxima-se da cama, com uma chávena de chá fumegante.
-
MALAQUIAS
Bebe a infusão enquanto está quente.
LEONOR
Só tu para me obrigares a beber camomila…
MALAQUIAS
Acalma a dor, enquanto o comprimido não faz efeito.
Leonor ergue-se a contra gosto e, sentada na cama, já sem a toalha nos olhos, bebe a infusão enquanto faz caretas. Bebe depressa e volta a deitar-se. Malaquias recoloca-lhe a toalha húmida sobre os olhos. O burro encosta o focinho ao parapeito da janela. As cortinas cobrem-no e descobrem-no sucessivamente.
Malaquias deita-se silenciosamente ao lado da companheira, que vai gemendo baixinho.
-
LEONOR
Vai trabalhar. Tens de escrever antes de o Henriques chegar para a apanha.
MALAQUIAS
Estou encalhado no princípio…
LEONOR
Lê-me o que já escreveste.
Malaquias levanta-se devagarinho, sai do quarto e regressa quase logo com uma folha de papel, deita-se de novo ao lado de Leonor e, quando ia começar a ler o que já tinha escrito, a companheira enterra a cabeça na almofada, aninhando-se num canto da cama, dando assim a entender um aumento de dor. Malaquias tem o rosto crispado e encosta o corpo ao da companheira, deixando a folha cair da cama abaixo. Leonor insiste numa voz sofrida:
-
LEONOR
Vai trabalhar, Malaquias, por favor.
Passados uns momentos, o companheiro responde-lhe baixinho:
-
MALAQUIAS
Tenho que ficar.
A dor aumenta, Leonor trinca as mãos de Malaquias e encosta a cabeça ao ombro do companheiro. O burro zurra muito alto, desconsoladamente, e arranca com o focinho uma das cortinas vermelhas. Parte com a cortina entre os dentes, arrastando-a pela terra fora, perdendo-se de vista na serra suspensa no calor.
FIM
(O burro zurra no negro até ao final do genérico.)
Mathilde Ferreira Neves é artista de variedades.