NUNO VENTURA BARBOSA
AGENTES
- um homem
- uma mulher
- dois figurantes
- um cão
SINOPSE
duas personagens, um ele e uma ela, casal, em revisão de si, do outro e da convivência ao longo de uma noite. os tempos são apenas o passado e o presente. o futuro não existe. o presente é o ponto de chegada que se vai prolongar no tempo. essencialmente recapitulação, perspectiva
projecto ficcional híbrido, na confluência do teatro e do cinema, baseado no artifício de imagem fade in. assente em torno de uma situação e texto burgueses algo sabotados, quer por elementos advindos do próprio texto, quer por dispositivos empregues na encenação
NOTAS À ENCENAÇÃO
- os personagens preparam uma refeição durante o tempo que estão em palco. os gestos são mecânicos e rotineiros, as tarefas articuladas e complementares. esta acção enquanto um todo ajuda a situar as palavras proferidas, a colocar o diálogo num contexto e a construir a relação. as personagens interagem a dois níveis, por vezes convergentes mas sobretudo contrastantes nos aspectos veiculados – o gesto essencialmente relativiza/dessacraliza a palavra. naturalmente, surgirão interpelações funcionais relacionadas com a preparação da refeição. estas devem brotar da situação e ser tranquilamente integradas pelos actores, mantendo-se o mais possível neutras, num registo contrastante com o investimento emocional depositado no diálogo
- a proximidade entre as personagens tem que ser patente e residirá menos na forma de falar e mais nos gestos trocados, sobretudo na manifestação, proxémica e relacionamento corporal. a não perder nunca de vista a dimensão afectiva directa, o grande carinho entre os dois. para mais, não haverá nenhuma tentativa para elidir ou androgenizar as personagens – ele e ela sê-lo-ão marcadamente enquanto corpos
- aquando da troca de falas não deve haver nenhuma estranheza por parte das personagens/actores nem margem para uma exploração cómica
- os diálogos tenderão para um bloco único mas comportarão vários andamentos – não haverá quebras mas a passagem será perceptível. é absolutamente vital assegurar ligação entre partes, retornos de matérias, revisitações lugares, etc
- a iluminação tenderá a ser branca, homogénea, projectando ténues sombras das personagens nas paredes, tecto e chão. na medida das possibilidades técnicas, procurar-se-á estender o fade in a toda a duração da peça, a qual se iniciará a negro
ACTO PRIMEIRO E ÚNICO
a cozinha, algo pequena, de uma casa. ao centro um balcão quadrangular, onde se encontra todo o material e os alimentos. as paredes, tecto e chão estão inteiramente forrados por um mar de imagens (fotografias, folhetos de supermercado, notícias, páginas de obituário, cartazes de cinema, teatro, exposições, concertos, fotocópias, capas de livros e álbuns, radiografias, desenhos e pinturas, recibos de supermercado, títulos de transporte, embalagens de medicamentos e de alimentos)
eles estão em cena, ele à esquerda, ela à direita, ambos encostados ao balcão. estão frente a frente, alinhados num eixo paralelo à parede de fundo e equidistantes desta e da imaginária da frente, olhando-se. têm umas antenas. iniciaram a preparação de uma refeição
UM
não percebeste, pois não? andas numa de não perceber
OUTRO
é uma fase, estás a ver? há-de passar
UM
mas porque é que estás a gozar?
OUTRO
a gozar?
UM
ultimamente pegas em tudo o que uma pessoa diz. não se consegue conversar contigo, pá
OUTRO
pego em tudo?
UM
sim, percebes perfeitamente mas
OUTRO (interrompendo)
como é que sabes?
UM (procurando terminar)
mas fazes ponto de honra, (reagindo à frase mais próxima) ó pá, não me lixes
OUTRO
como?
UM
são coisas que tu sabes, não é preciso estar a discutir
OUTRO
não, não. eu acho que aí há um problema: parte-se do pressuposto que o outro sabe exactamente do que se trata e isso não é bem assim
UM
estamos a falar de assuntos que
OUTRO (interrompendo, ou melhor, continuando como se não houvera interrupção)
depois gera-se uma série de equívocos
UM
estamos a falar de questões que já sabemos bem
OUTRO
e não nos entendemos, por causa disso
UM
não é por isso que não nos entendemos
OUTRO
olha que se calhar é
UM (com um certo desespero)
tu é que estás a fazer com que seja. se parasses de discutir a discussão, podíamos falar do que interessa
OUTRO – mas isto não interessa? (pausa) isto não te interessa? (com um certo desprezo) se nem sequer conseguimos falar claro como é que havemos de nos entender?
UM (visivelmente cansad@)
falar claro? (frustrad@) mas que é que tu queres? (paternalista) vamos pegar em cada palavrinha e ver o que realmente queremos dizer com ela?
OUTRO
…
UM
melhor: agarramos no dicionário e vemos se concordamos com o que lá está escrito. aliás, se calhar queres rever a nossa vida e discutir o que cada momento significou? hum? é isso?
OUTRO
…
UM
passo a passo. (circense e magoad@) meninos e meninas, senhoras e senhores, o maior espectáculo do mundo vai começar! reúnam as peúgas e as mágoas e entrem na arena. (já não circense, ainda magoad@, audível mas para si mesm@) depois vamos autopsiar a memória com ela ainda viva, desconfiados, rançosos
OUTRO (triste)
se calhar até era preciso
UM (insultad@)
vai-te foder. (pausa curta. apelativ@) porque é que insistes em ir por aí?
figurante entra, bate pratos
- OUTRO – cheguei a um ponto da vida em que não interesso os outros. não falamos a mesma língua
figurante bate pratos, sai
- UM (perdid@)
hum?
OUTRO (regressando)
hum?
UM
não percebi
OUTRO (pausa gorda. lança os olhos à terra)
acho que entrei na fase de afastamento. a tangente acabou. as linhas abandonam-se. deixa de haver sobreposição. e daqui em diante impõe-se a distância. acelerando gradualmente
UM
ei!
OUTRO (olha-@. pausa. professoralmente)
se vires o trajecto de cada pessoa como uma linha, pegas numa folha de papel, desenhas uma linha e essa linha corresponde à vida de uma pessoa (não tem que ser uma linha recta). depois continuas a desenhar linhas, ou seja, a colocar mais pessoas, mais vidas, na folha. sim? as linhas têm tamanhos diferentes, umas mais pequenas, outras maiores mas, à medida que vais enchendo a folha, acabas por sobrepor linhas. é inevitável. as linhas vão-se cruzar. e as relações são isso, estás a ver? durante a vida as pessoas aproximam-se umas das outras, afastam-se, por vezes encontram-se, num dado momento. na folha, as linhas, de quando em vez, interceptam-se num dado ponto. é isso. e às vezes é mais que isso: às vezes as linhas parecem sobrepor-se durante um bom bocado antes de se voltarem a separar. antes de conseguirmos distinguir novamente duas linhas. (mais baixo) nas folhas antigas havia muitas linhas que se encontravam a certa altura e só se voltavam a separar mesmo antes de acabarem
UM
porque, sim, já percebi
OUTRO
nas folhas recentes as linhas cruzam-se cada vez mais e têm desenhos cada vez mais sinuosos (quase murmurando) depois há as figuras com duas dimensões e
UM (recuperando o pensamento onde el@ própri@ o tinha deixado)
e tu estás a afastar-te das outras linhas na tua folha. qual é o drama? podes sempre voltar a aproximar-te. tu própri@ dizes que elas vão e vêm
OUTRO (insultad@)
o drama! o drama é perceber que uma data de coisas, uma data de pessoas acabaram
UM
acabaram?
OUTRO (veemente)
sim. fim. é uma questão de tempo. (pompos@) eis o drama
UM (quase aborrecid@)
oh. e mesmo que haja afastamento não é definitivo
OUTRO (segur@)
é é. ai é é
UM
mas como é que podes antever isso?
OUTRO
basta estar atento, pá. basta estar atento
UM
tanta certeza. como é que sabes o que se passa na cabeça dos outros?
OUTRO (cortante)
eu sei o que se passa na minha cabeça. (recuando) não é disso que se trata
UM
então é o quê?
OUTRO
somos, é a vivência, é o, quando nos encontramos, é o que fazemos. o que acontece. e o que dizemos
UM
desembrulha
OUTRO (em catadupa)
que é que queres que eu te diga? não te sei explicar. já viste bem como as coisas funcionam ultimamente? relações-equívoco
UM
que exagero, pá
OUTRO
claro que é um exagero
UM
não acho que seja nada assim. aliás, não percebo que raio de conversa é essa
OUTRO
pois. nem eu percebo muito bem
UM
então estamos a falar de quê?
OUTRO
…
UM
bom, deixa lá. vamos
OUTRO (com dor)
da distância. não te custa?
UM
hum?
OUTRO
sinto os meus amigos cada vez mais longe. estou a conversar com eles, a passar a taça da salada, a abraçá-los e estamos muito longe, muito longe. há ali um abismo
UM
não sinto nada disso
OUTRO (fechando)
pronto
UM
“pronto” nada. qual “pronto”? já não os sentes como teus amigos?
OUTRO
sinto. gosto muito deles
UM (com carinho e malícia)
achas que não gostam de ti?
OUTRO
muitas vezes percebo que não lhes interesso, que o que digo não tem peso nem substância. é quase como se me suportassem
UM
ou antes:
OUTRO
se eu não me consigo aturar, como esperar que os outros o façam? (encolhendo os ombros) sim
UM
então o mal é de quem?
OUTRO
o mal?
UM (com enfado)
o problema, a questão
OUTRO
ok, ok
UM
afinal parece vir mais de ti que deles
OUTRO
não sei. quer dizer… mas também, para o caso, pouco interessa: a distância está lá e é irredutível
UM
mas qual distância?
OUTRO
pior: expande-se mais e mais. não é uma hipérbole, é assim. há que lidar com esse facto
UM
tu deves precisar é de arranjar problemas: vê-los onde os não há
OUTRO
para mim é bastante claro
UM
seja. e vais fazer o quê?
OUTRO
aceitar
UM
aceitar? dizes que dói e que mais e depois sentas-te a ver os barcos zarpar? boa
OUTRO
não porra
UM
então?
OUTRO
falas como se me fosse indiferente
UM
tu é que dás essa impressão. resignas-te
OUTRO
queres que faça o quê? negar a evidência? há razões para isso acontecer, não se trata de uma conspiração. antes fosse
UM
inverte as coisas, fala com as pessoas, sei lá, agora, não te venhas queixar sem fazer nada
OUTRO
tu é que perguntaste. eu estava caladinho
UM
a remoer. que bom
OUTRO
a verdade é que os dias passam e nós, há uma série de coisas que se entrepõem, acontecimentos, vivências, quotidianos. tão simples como tempo e espaço. a certa altura olhas para os teus amigos e não sabes que lhes dizer ou, pior, já não tens motivação, à-vontade para lhes falares, até mesmo para estares com eles
UM
mas é natural que as pessoas estejam mais juntas numas alturas e noutras deixem de estar tão presentes nas vidas umas das outras
OUTRO
certo. mas eu estou a falar de uma certa natureza de distância, percebes? quando esta, quando há um desconforto e uma falta de entusiasmo. apercebes-te que não estás a construir nada
UM
mas e o que já se construiu? já fizeste tanta coisa com os outros
OUTRO
não percebes que esse é que é o problema? vive tudo do passado. antes, antes e antes. então e agora? lidar com os outros como quem olha fotografias?
UM
não é isso
OUTRO
é isso é e tu sabe-lo bem. fotografias belas, evocadoras, (enfatizando) passadas
UM
escuta
OUTRO
escuta nada. sou @ primeir@ a acarinhar o que já se fez. mas é preciso justificarmo-nos todos os dias. (com um certo enfado) já falámos sobre isto. sabes bem o que quero dizer
UM
sim
OUTRO (pausa curta. literári@)
se não houver vitalidade, estagnamos. e passamos a ter uma relação mitificada com os outros. e as nebulosas? não estás fart@ de nebulosas?
UM (irónic@, encolhendo os ombros e anuindo com a cabeça)
claro que sim
OUTRO
e de mordomos? temos que nos exigir a cada instante. ou a água fica choca. enterras o afecto solto, a coragem, a batalha e passas às palavras fúnebres: aturar, acomodar, acobardar, lembrar. (dinâmic@) sim, claro que sim: vivam as cumplicidades e as partilhas e as evocações. as pessoas vivem disso e ainda bem. carambas, eu como lembranças ao pequeno-almoço, estou sempre a contar estórias, a revivê-las, mas a memória é inimiga. gostar de ti há cinco anos é gostar de ti agora?
UM (encolhe-se)
OUTRO (procurando minimizar-se)
por exemplo. não é… mas não achas? imagina chegares a um ponto, (desacelerando) imagina alguém a parar e a tentar perceber porquê, as razões, para ver aquela outra pessoa a lavar os dentes todos os dias
UM (distraíd@)
sim
OUTRO (de volta ao ritmo normal)
e pronto, só vai encontrar isso muito longe no tempo. pode ser belo mas um simples encosto… (gesticula) é uma relação empalhada, percebes?, é uma relação empalhada. é um indício morto. inconsequente. é uma pegada fóssil
figurante entra, bate pratos
- UM (com certa raiva e decisão mas fraquejando)
eu não acho nada inconsequente. acho isso brilhante. e mais: uma das coisas mais bonitas de ser homem é constituir uma memória. aliás, é o que nos diferencia dos animais
OUTRO
o que nos diferencia dos animais é deus. é acreditarmos em deus
UM (como uma acta de tribunal)
tu não acreditas em deus
OUTRO
talvez não individualmente mas enquanto género. e isso faz com que sejamos o que somos
UM (metódic@)
está bem mas espera lá
OUTRO
hum
UM
tu ontem não eras? tu quando queres estar com alguém, hoje, não é pelo que já aconteceu antes, por causa de ontem? diz lá, não é a memória que te cimenta às pessoas?
OUTRO (cruel)
sim. e então?
UM
porra! “e então?”? então é isso. acabaste de dizer que sim, que é a memória
OUTRO
mas eu concordo com isso. só que se eu hoje já não, se eu hoje deixei de me saber ou poder relacionar com alguém, devo continuar a fazê-lo por causa de ontem? o que é que tem mais valor? onde é que está a actualização? a memória é a maior das fraudes
UM
fraude?
OUTRO
sim. ilude a erosão, o desgaste. (audível mas mais para si) facilita e engana. ficas barrigudo
UM
mas tu consegues imaginar-te sem memória?
OUTRO
não é sem memória mas é (sem drama, hã?), desconfiando dela, sabendo como é… perversa. (esforçando-se) o que importa é ir limpando e digo isto para mim. (mancha literária) até porque nem gosto muito de bananas
figurante bate pratos, sai
- UM
mas já viste onde é que isso leva? teres que te redefinir todos os dias perante os outros? que violência
OUTRO
ah, pois. bem violento
UM
porquê? qual a necessidade?
OUTRO
porquê? ora
UM
é absurdo. “perversa”. oh pá
OUTRO (convict@)
não, não. é violento mas não é nada absurdo. é uma questão de disciplina. ir fazendo umas tábulas rasas
UM
não sei, acho que não é nada assim
OUTRO
posso estar a fazer disto muito mais do que é ou vale. no fundo, eu só digo que é preciso dinâmica e não dar as coisas por garantidas
UM
não percebes que quando ages assim, quando falas em tábuas rasas, estás a desprezar tudo aquilo que já acarinhaste, estás a cagar para as pessoas, a dizer que não significou nada?
OUTRO (calm@)
podes ver isso assim. para mim é precisamente o contrário: é dizer que as coisas foram tão significativas que me recuso a mumificá-las
UM
estás doid@. acho que nem tu própri@ acreditas no que estás a dizer. para começar desconfio que ninguém tem força para uma tortura dessas. e depois, o que é que se ganha com isso?
OUTRO
verdade, intensidade?
UM
deixa-te de merdas. isso é uma grande perversão. à força de quereres enaltecer, arrasas. boa merda
passam 5 segundos
- OUTRO
deixa lá
passam 20 segundos ou portugal raízes musicais – cd2 – faixa 5
UM
o que eu acho estranho é que tu sempre defendeste a memória de um ponto de vista político. e agora vens com essa da fraude
OUTRO
e?
UM
não achas contraditório?
OUTRO
não
UM
ai não?
OUTRO
não
UM
muito bem, então
OUTRO
vês como tomar as coisas por garantidas faz com que não nos entendamos?
UM
outra vez essa conversa?
OUTRO
claro
UM
desisto
OUTRO
pois. pois desistes. o caso é o mesmo na política como nos afectos. há que lembrar, sim. mas há que agir dia-a-dia: para que se repitam algumas coisas e outras não
UM
não percebo
OUTRO
o quê?
UM
então a memória serve, não serve?
OUTRO
sim, porra. é o contexto. olhas para trás: aprendes, compreendes, situas
UM
viva a memória
OUTRO
mas não resolves nada. tudo depende da nova acção. cada gesto tem que se auto-justificar
UM
abaixo a memória
OUTRO
e eu é que gozo. comigo é que não se pode conversar
UM
acho que vai aí uma grande confusão
OUTRO (expirar grave)
o problema é quando uma pessoa olha para a outra passados anos de convivência, vê duas imagens e só gosta de uma. e essa não é a do próprio dia mas a do dia anterior
UM (a medo)
estás a falar de quê?
OUTRO (ignorando)
tenta-se sobrepor as imagens, os tempos mas há uma dessincronia letal. (fixa o olhar no outro) aquilo não bate certo. e só há duas hipóteses: ou continuar a olhar a imagem antiga, ficar agarrado à memória e à ilusão; ou olhar para a imagem actual e saber que nada apaga isso
UM (quase em pânico)
e depois?
OUTRO
cada um saberá
UM (em pânico)
e depois?
OUTRO
é isso: tem que haver um depois. tem que se perceber que há depois. antes e depois. e há coisas que permanecem mas também há coisas que se transformam. outras desaparecem
UM (à beira das lágrimas)
nós
OUTRO
como na religião. mesmo que não se acredite em deus. antes era uma coisa e agora é outra. tem que lidar com os nitrinos, a anti-matéria, a neurologia, a nanotecnologia, os ambientalistas. a fé é diferente
UM (frágil)
eu tenho fé no amor. e isso não mudou
OUTRO
eu tinha. ou melhor, tenho. mas é diferente
UM (suplicante)
não achas que nos salva?
OUTRO (sem margem para dúvidas)
sim, acho que nos vai salvando. e isso é decisivo. mas – e nós já falámos sobre isto – a ideia de alguém que nos resgasta em absoluto e coloca noutra dimensão morreu
UM
mudaste tanto. agora quando se trata de afectos falas de política
OUTRO
se calhar não mudei assim tanto
UM
e já não acreditas na concentração
OUTRO
sim. não olho a univocidade da mesma maneira. dar-se em exclusivo, receber apenas de um, já não… não vale a pena repisarmos isto. já não acredito que (não é interrompid@, suspende-se)
UM
eu continuo a achar o mesmo
OUTRO
eu sei. mas o que mais quero é estar contigo, portanto a questão não se põe
UM
só saber que isso deixou de vir de ti e que é uma imposição
OUTRO
está bem. mas em termos práticos resulta no mesmo. eu ajo em conformidade
UM (como numa publicidade moralista)
“ajo em conformidade”. atravesso na passadeira. não roubo chocolates no supermercado
OUTRO
tens razão mas não faças isso
UM
o quê?
OUTRO
já falámos nisto. já chegámos a um resultado
UM
sim. mas que resultado? tu vais cumprindo e eu morro de medo?
OUTRO
que queres que faça?
UM (veloz)
quero que não digas, que não penses que o comunismo tem alguma coisa a ver com isto. isso não se aplica no amor. quero que me ames ponto final. só a possibilidade dá cabo de mim
OUTRO
mas porra, não há perigo: mesmo que quisesse, as pessoas não estão preparadas para isso. nem eu sei se estaria quanto mais. amar assim, sem propriedade, aceitar isso, só no poema
pausa. actores suspendem-se, trocam de lugar e de acção, repetem situação anterior nos novos papéis
OUTRO (frágil)
eu tenho fé no amor. e isso não mudou
UM
eu tinha. ou melhor, tenho. mas é diferente
OUTRO (suplicante)
não achas que nos salva?
UM (sem margem para dúvidas)
sim, acho que nos vai salvando. e isso é decisivo. mas – e nós já falámos sobre isto – a ideia de alguém que nos resgasta em absoluto e coloca noutra dimensão morreu
OUTRO
mudaste tanto. agora quando se trata de afectos falas de política
UM
se calhar não mudei assim tanto
OUTRO
e já não acreditas na concentração
UM
sim. não olho a univocidade da mesma maneira. dar-se em exclusivo, receber apenas de um, já não… não vale a pena repisarmos isto. já não acredito que (não é interrompid@, suspende-se)
OUTRO
eu continuo a achar o mesmo
UM
eu sei. mas o que mais quero é estar contigo, portanto a questão não se põe
OUTRO
só saber que isso deixou de vir de ti e que é uma imposição
UM
está bem. mas em termos práticos resulta no mesmo. eu ajo em conformidade
OUTRO (como numa publicidade moralista)
“ajo em conformidade”. atravesso na passadeira. não roubo chocolates no supermercado
UM
tens razão mas não faças isso
OUTRO
o quê?
UM
já falámos nisto. já chegámos a um resultado
OUTRO
sim. mas que resultado? tu vais cumprindo e eu morro de medo?
UM
que queres que faça?
OUTRO (veloz)
quero que não digas, que não penses que o comunismo tem alguma coisa a ver com isto. isso não se aplica no amor. quero que me ames ponto final. só a possibilidade dá cabo de mim
UM
mas porra, não há perigo: mesmo que quisesse, as pessoas não estão preparadas para isso. nem eu sei se estaria quanto mais. amar assim, sem propriedade, aceitar isso, só no poema
um transeunte (não iluminado, mera silhueta) atravessa o espaço da direita para a esquerda seguindo um cão, cuja trela segura na mão direita
OUTRO
nas calças que puseste para lavar estava um bilhete de cinema. terça. dia 20. 19:45
UM (meramente fátic@)
hum
OUTRO
tinhas-me dito que ias arejar, que não ias a lado nenhum
UM
…
OUTRO – não me disseste nada porquê? sabias que queria ver o filme
UM
sim
OUTRO
afinal, foste fazer o quê?
UM
…
OUTRO
foste ver o filme. não foste? está aí o bilhete
UM
…
OUTRO
então? não me respondes? não vais dizer nada?
UM (pausa imensa)
nem sei que te diga. para começar acho, não acho que tenha que dizer nada. esperava que aceitasses o meu silêncio tal qual acolhes as minhas palavras. (ao ataque) quando estivemos em situações simétricas, quando tu nem articulavas palavra
OUTRO
não foi bem assim
UM
aí, eu, mesmo sem saber, sem perceber nada, aceitei. aceitei a tua reclusão e aceitei-te nela. (pausa) só podia ser assim (pausa). escusava de ir por aí mas enfim: eu só quis ir ao cinema sozinh@. percebes?
OUTRO
estás diferente. antes contavas-me tudo. planeávamos as coisas juntos
UM
sempre fizemos coisas separadas
OUTRO
mas havia entendimento, articulação
UM
falas como se fosse cada um para seu lado
OUTRO
é quase isso
UM
então não é
OUTRO (pensando em voz alta)
ages como, parece que precisas, (iluminad@) parece que precisas de conquistar espaço para ti. é isso, não é? eu atrofio-te? eu cerceio-te?
UM (quase descomprometid@)
não
OUTRO
é engraçado, porque, antes, isso não era nada um problema. pelo contrário. e até tinhas sido tu a montares-me o cerco. quem estivesse de fora até enjoava. boa palavra, é isso mesmo: enjoar
UM
oh
OUTRO
bastávamo-nos. ou achávamos que sim. acreditávamos que, tantas vezes a figura do casalinho: “eles estão na deles”. agora, oh, agora o ponto de saturação já se avista, aliás, está cada vez mais perto, ali mesmo. se a certa altura era certo que atrás de um lá aparecia o outro (era inevitável) agora (suspende-se. sorrindo) hum, a estória das linhas, não é?
UM (triste mas conformad@)
a estória das linhas
OUTRO (incrédul@)
isso aplica-se-me?
UM (apenas um esboço, imperceptível, atropelado)
OUTRO
essa fantochada das linhas, isso é comigo?
UM
isso não é contigo
OUTRO
sim sim, não é comigo, não é SÓ comigo. é isso que tu pensas?
UM
não
OUTRO
as nossas linhas piupiu? já éramos?
UM
não, pá
OUTRO (ignorando, em tom de estória de terror mas auto-paródico)
“entrei no trilho do afastamento”
UM
que é que estás para aí a dizer?
OUTRO (caindo marcadamente)
é triste. porra
UM
mas onde é que tu já vais, cristo madalena? ganha calma. eu só fui ao cinema sozinh@
OUTRO
não não: não foste só ao cinema sozinh@. escondeste o facto. quando te perguntei vieste com evasivas. não é um episódio isolado, é bem mais que isso, não é?
UM
não percebo qual a necessidade de discutir isto. não tenho que pedir a ninguém para
OUTRO (violent@)
não sejas parv@, ninguém põe isso em causa. não há que prestar contas
UM
pois não
OUTRO
pois não. mas quem fez disto um assunto foste tu
UM
eu?
OUTRO
nem é tanto por teres essa necessidade de ires sozinh@ ao cinema
UM
espero que não
OUTRO (ignorando)
isso é novo mas não é por aí. trata-se é de o dissimulares, de ser à revelia. tu própri@ pareces pouco confortável com a situação
UM
provavelmente… sei lá. provavelmente porque não ias perceber. e eu também não sei muito bem porque é que quis ir sozinh@
OUTRO (para si)
nunca me tinha apercebido. ou antes, não pensei que fosse isso. ou talvez soubesse mas (actualizando o discurso, irritad@) eu não ia perceber? mas desde quando é que passaste a agir assim?
UM
tens razão. é idiota da minha parte
OUTRO
não te disse que mudaste?
UM
hum?
OUTRO
nunca te furtaste ao confronto. fazias ponto de honra nisso. (como numa manifestação de rua brandindo um cartaz) “morte aos diplomatas. morte aos diplomatas”. agora eu PODIA não perceber e mais não sei quê e, pronto, já não se fala
figurante entra, bate pratos, sai
- UM (cavernos@)
estou cansad@
OUTRO
cansad@ estou eu
passam 20 segundos
UM – já não, (pausa) estou sem forças para isto
OUTRO
?
UM
nunca pensei que nos batesse à porta. no fundo é o que falávamos há pouco
OUTRO (com enfado)
cá vamos nós. ou melhor: lá vais tu
UM (algo alhead@)
hum?
OUTRO
perdes-te para aí. já não estás a falar comigo, é de ti para ti
UM (com escárnio e voz aguda)
“como é que nos deixámos chegar aqui?” (profunda e demorada interrogação ao outro). fartei-me de batalhar, dei tudo o que tinha, ninguém me pode dizer nada. mas.
OUTRO (assustad@)
não estou a gostar da conversa
UM
instala-se de mansinho, não é? mais que avisad@ e mesmo assim. não sei se estou mudad@, como tu dizes, pelo menos assim como tu dizes, mas de certeza que estou gast@. e nota-se. nota-se bem. a nossa relação esboroa-se
OUTRO
és quê?
UM (vagaros@)
pronto: estou cansad@, recuo e pimba, já não temos salvação. era uma questão de tempo
OUTRO
mas estás a dizer que
UM
eu é que nos aguentei até agora? sim
OUTRO
espera lá
UM (veloz)
sabes bem que quem fez sempre as despesas fui eu. eu é que nos ergui vez após vez
OUTRO
já agora! como se eu não estivesse lá. (gesticulando) dois, estás a ver?, dois
UM (tépid@)
tu sabes
OUTRO (quase ful@)
eu sei? eu sei uma merda, é o que eu sei
UM
isto torna-se cómico
OUTRO (sever@)
essa agora
UM
verdadeiramente cómico
OUTRO (quase brand@)
olha que tu
UM (brusc@)
pára. se pensares bem, vês que tenho razão. mas não interessa
OUTRO (neutr@)
de repente parece que nada interessa
UM aproxima-se. rodeia OUTRO por trás com os braços, beija-lhe o ombro e nele finca o queixo. suspendem-se por largos segundos. trocam carícias doces mas magoadas, alguns sorrisos, olhares cúmplices. desabraçados tocam-se nas mãos. UM afasta-se e retoma actividade. passam 10 segundos
OUTRO (misturando seriedade e fragilidade)
tu gostas de mim?
UM (desatinad@)
ó pá, vai pró caralho!
OUTRO (palavras entaladas na garganta, som enlatado)
UM (quase enojad@)
o que uma pessoa tem que ouvir. (encarquilhando as sobrancelhas) não sabes, pois não? que merda de pergunta
OUTRO (pianinho)
não quiseste ir comigo ao cinema
UM
pró caralho. a seguir é o quê? não quero o mesmo prato no restaurante?
OUTRO
não digas merda
UM (sincer@)
desculpa. mas que é que queres, pá? uma frase dessas
OUTRO
nunca mais o disseste
UM (estupefacto)
é incrível. é doentio
OUTRO
mas é verdade
UM (agressiv@)
não é não, digo-to todos os dias. nos actos. não vês?
OUTRO
mas
UM (com algum desprezo)
se preferes as verbalizações, olha. eu defino-me pelo que faço, sabes bem disso
OUTRO
não era isso que eu queria dizer
UM
andas distraíd@. se prestasses atenção ao dia-a-dia não precisavas de cerimónias no calendário
OUTRO (saca de um bloco e de uma caneta, ajoelha-se, senta-se sobre as pernas e repete em voz baixa enquanto escreve com o caderno apoiado no chão)
prestar atenção ao dia-a-dia, prestar atenção ao dia-a-dia
UM
como é que é possível? só o facto dessa questão te passar pela cabeça. é tão ridículo
OUTRO
prestar atenção ao dia-a-dia, prestar atenção ao dia-a-dia
UM
aliás, faz pensar
OUTRO pára de escrever, abandona bloco e caneta, olha UM
- UM
a questão é que nos recusamos a avançar seja para onde for quando não podemos permanecer no mesmo sítio
pausa. actores suspendem-se, trocam de lugar e de acção, repetem situação anterior nos novos papéis
UM (misturando seriedade e fragilidade)
tu gostas de mim?
OUTRO (desatinad@)
ó pá, vai pró caralho!
UM (palavras entaladas na garganta, som enlatado)
OUTRO (quase enojad@)
o que uma pessoa tem que ouvir. (encarquilhando as sobrancelhas) não sabes, pois não? que merda de pergunta
UM (pianinho)
não quiseste ir comigo ao cinema
OUTRO
pró caralho. a seguir é o quê? não quero o mesmo prato no restaurante?
UM
não digas merda
OUTRO (sincer@)
desculpa. mas que é que queres, pá? uma frase dessas
UM
nunca mais o disseste
OUTRO (estupefacto)
é incrível. é doentio
UM
mas é verdade
OUTRO (agressiv@)
não é não, digo-to todos os dias. nos actos. não vês?
UM
mas
OUTRO (com algum desprezo)
se preferes as verbalizações, olha. eu defino-me pelo que faço, sabes bem disso
UM
não era isso que eu queria dizer
OUTRO
andas distraíd@. se prestasses atenção ao dia-a-dia não precisavas de cerimónias no calendário
UM (saca de um bloco e de uma caneta, ajoelha-se, senta-se sobre as pernas e repete em voz baixa enquanto escreve com o caderno apoiado no chão)
prestar atenção ao dia-a-dia, prestar atenção ao dia-a-dia
OUTRO
como é que é possível? só o facto dessa questão te passar pela cabeça. é tão ridículo
UM (continua sem ter parado de repetir)
prestar atenção ao dia-a-dia, prestar atenção ao dia-a-dia
OUTRO
aliás, faz pensar
UM pára de escrever, abandona bloco e caneta, olha OUTRO
- OUTRO (como quem pronuncia um axioma)
a questão é que nos recusamos a avançar seja para onde for quando não podemos permanecer no mesmo sítio
UM
vamos para onde?
OUTRO
não sei
UM
lá fora só há vazio. ou carrossel. seja como for: loucura
OUTRO
a pedra espera ainda dar flor
UM
e qual é o problema?
OUTRO
olha para nós. onde é que estão as lágrimas?
UM
mas queres o quê?
OUTRO
não quero nada
UM
sozinhos não faz sentido
OUTRO
e juntos faz?
UM
sim. não?
OUTRO
já não sei nada
UM
ai, mãe
OUTRO
isto é fácil. a dor está apenas nas palavras
UM
não digas isso
OUTRO
até o corpo já percebeu. só nós é que não. ou fazemos de conta. acho que até os outros
UM
quero que os outros se fodam
OUTRO
sim
UM
escuta
OUTRO
parece que estamos a discutir o sexo dos anjos. esta discussão não vale a pena
UM
vale a pena
OUTRO
olha para nós
UM
cala-te
OUTRO
olha bem para nós
UM
cala-te, pá
OUTRO
mas já olhaste bem para nós?
UM
cala-te de uma vez!
OUTRO
pois calo. é só gordura
2005/6
nuno ventura barbosa é mal-educado.