Existirá um cinema em diálogo (contra ou em tensão) com a literatura? Sempre, por definição? Em que medida será operativo pensar um cinema narrativo e um cinema poético ou lírico?
responde RENATA SANCHO
Creio que existe entre o cinema e a literatura um diálogo dissídio. Entendo que esse diálogo não é contra a literatura, mas antes um diálogo em tensão pontuando uma relação intrínseca que se alimenta de um fascínio mútuo numa discussão acalorada.
É frequente o cinema construir-se a partir da literatura, adaptando vários géneros literários e, sobretudo, modos narrativos e dramáticos. As imagens em movimento conseguem recriar o mundo real, inventar uma noção de tempo e espaço próprios, inclusive corresponder-se com o sonho. O poeta Carlos Drummond de Andrade apresentou-me a ideia do cinema como liberdade. No poema “Papo com Lumière” escreveu: “Libertaram as paisagens e soltaram as imagens / Elas agora entram em nossas casas, misturam-se com as nossas vidas.” (in Poesia Errante). Gosto muito desta imagem. A linguagem cinematográfica tem um poder criador indiscutível, nunca se reduz à adaptação ou à mera reprodução da realidade.
Considero o cinema uma arte que em si compreende e agrega géneros, estilos e linguagens distintos. Nessa medida faz todo o sentido haver essa distinção entre um cinema narrativo que se apropria de estilos, fórmulas e modelos narrativos provenientes de géneros literários; e, por outro lado, um cinema poético ou lírico, onde o valor poético de um filme surge da habilidade do cineasta para trabalhar os elementos próprios da linguagem cinematográfica, tais como a concepção das imagens, a luz, o som, a manipulação do tempo na montagem, o ritmo, provocando uma experiência transformadora em quem a vive.
Renata Sancho é cineasta.